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A review by katya_m
Reflexos nuns Olhos de Oiro by Marta Mendonça, Carson McCullers
"Considerava de modo particular os três fundamentos da existência: a própria vida, o sexo e a morte. Sexualmente, movia-se num delicado equilíbrio entre os elementos masculino e feminino, com as susceptibilidades de ambos e sem os poderes activos de nenhum deles. (...)
Nas suas relações com os outros dois fundamentos, a sua posição apresentava-se muito simples. No equilibrio entre esses dois instintos em direcção à vida e em direcção à morte a balança pesava fortemente para o último. Por tal motivo o capitão era cobarde."
Ler Carson McCullers é rendermo-nos à intensidade (e imensidade) da solidão, ao desespero dos amores não correspondidos, ao absurdo dos nossos sentimentos. É tudo isto, sim, mas muito, e muito mais: a ternura que a autora coloca nas relações humanas - embora muitas vezes patéticas - engrandece a tragédia que é inevitável; e o romantismo que lhe é latente (e a muitos/as sulistas) faz-me, não raras vezes, duvidar se esse movimento emanou verdadeiramente da Europa oitocentista - onde é, repetidamente (não sempre!), desenxabido, mole e pouco sincero - ou se verdadeiramente se deve a estes/as autores/as modernos que o revestem de um gótico mais puro, mais cruel, mais próximo da terra e do coração dos homens.
Reflexos Nuns Olhos De Oiro, como os demais títulos que li da autora, assenta nos elementos simbólicos góticos que são escolhidos como ferramentas por excelência para entender a história das paixões frustradas, dos sentimentos reprimidos, do travestismo dos personagens que figuram no romance:
"Leonora Penderton não temia os homens, nem os animais, nem o Diabo. Quanto a Deus, jamais o conhecera. Ouvindo mencionar o nome do Senhor, pensava apenas no pai, que em certas tardes de domingo costumava ler a Bíblia. Desse livro sabia duas coisas: que Jesus fora crucificado num lugar a que chamavam Calvário e que Ele se deslocara, algures, em cima de um jumento. Que espécie de pessoa podia ser quem viajava de burro?"
E Carson , que é já uma escritora contida nesta altura, continua precisa nas caracterizações e exata na elaboração de cenas com o objetivo de maximizar o seu impacto, criando tensão dramática exatamente onde esta faz falta. Para isso recorre ao grotesco, à tragicomédia, e a personagens singularmente isolados e amorosamente exasperados. Essa é a história de Reflexos Nuns Olhos De Oiro, claro.
"Há momentos em que a necessidade mais premente de um homem é ter um objecto de amor, um foco em que centralize as suas comoções difusas. E há também ocasiões em que a irritação, o medo da vida, as desilusões, tudo isso, inquieto como espermatozóides, precisa de achar uma saída no ódio. O pobre do capitão não via ninguém a quem odiar e era as sim, há meses, o mais infeliz dos mortais."
Graças ao eterno desespero provocado pela frustração amorosa que assola a humanidade - segundo a visão de McCullers - as vidas de "dois oficiais, um soldado, duas mulheres, um filipino e um cavalo" mudarão para sempre. Pelo meio, os temas de sadomasoquismo, exibicionismo ou voyeurismo são ampla e honestamente abordados, sem julgamento: Carson não dedica este romance ao amor, mas à sexualidade. E por isso mesmo, raras vezes os personagens expressam qualquer maturação dos seus sentimentos ou desejos, toda a narrativa é focada nas sensações corporais, direcionada para a expressão do desejo sexual e o isolamento metafísico.
"No espírito fervilhavam-lhe planos diabólicos para se vingar do soldado. No íntimo bem sabia que esse ódio, apaixonado como o amor, o não largaria mais durante o resto da sua existência."
A sua capacidade de fazer um relato exato da morbidez da paixão, da obsessão e dos impulsos amorosos, sem recorrer ao exagero e à frieza, fazem desta autora uma das minhas referências.
"A própria casa irritava o capitão com a sua mobília vulgar: na sala havia o imprescindível sofá de repes, duas poltronas, tapete de um vermelho berrante e papeleira antiga, tudo rescendendo a banalidade. As cortinas de renda não primavam pela limpeza, e em cima da prateleira do fogão viam-se várias quinquilharias - um cortejo de elefantinhos de marfim, um par de candelabros (aliás, bonitos) de ferro forjado, uma estatueta pintada (que representava um preto a trincar uma talhada de melancia) e uma taça mexicana de vidro azul, na qual Leonora conservava velhos bilhetes de visita. Todos os móveis estavam um tanto desconjuntados, devido às mudanças frequentes. A acumulação de coisas, a frivolidade feminina de que tudo aquilo se revestia exasperavam ao máximo o capitão. Com secreto sentimento de inveja, pensava ele no quartel, vendo em imaginação os leitos de campanha simples e alinhados, o chão nu, as janelas severas, sem cortinas. A um canto desse dormitório fantasiado, ascético e austero, avultava (não se sabe porquê) um baú antigo, esculpido, com fechos de latão."
Nas suas relações com os outros dois fundamentos, a sua posição apresentava-se muito simples. No equilibrio entre esses dois instintos em direcção à vida e em direcção à morte a balança pesava fortemente para o último. Por tal motivo o capitão era cobarde."
Ler Carson McCullers é rendermo-nos à intensidade (e imensidade) da solidão, ao desespero dos amores não correspondidos, ao absurdo dos nossos sentimentos. É tudo isto, sim, mas muito, e muito mais: a ternura que a autora coloca nas relações humanas - embora muitas vezes patéticas - engrandece a tragédia que é inevitável; e o romantismo que lhe é latente (e a muitos/as sulistas) faz-me, não raras vezes, duvidar se esse movimento emanou verdadeiramente da Europa oitocentista - onde é, repetidamente (não sempre!), desenxabido, mole e pouco sincero - ou se verdadeiramente se deve a estes/as autores/as modernos que o revestem de um gótico mais puro, mais cruel, mais próximo da terra e do coração dos homens.
Reflexos Nuns Olhos De Oiro, como os demais títulos que li da autora, assenta nos elementos simbólicos góticos que são escolhidos como ferramentas por excelência para entender a história das paixões frustradas, dos sentimentos reprimidos, do travestismo dos personagens que figuram no romance:
"Leonora Penderton não temia os homens, nem os animais, nem o Diabo. Quanto a Deus, jamais o conhecera. Ouvindo mencionar o nome do Senhor, pensava apenas no pai, que em certas tardes de domingo costumava ler a Bíblia. Desse livro sabia duas coisas: que Jesus fora crucificado num lugar a que chamavam Calvário e que Ele se deslocara, algures, em cima de um jumento. Que espécie de pessoa podia ser quem viajava de burro?"
E Carson , que é já uma escritora contida nesta altura, continua precisa nas caracterizações e exata na elaboração de cenas com o objetivo de maximizar o seu impacto, criando tensão dramática exatamente onde esta faz falta. Para isso recorre ao grotesco, à tragicomédia, e a personagens singularmente isolados e amorosamente exasperados. Essa é a história de Reflexos Nuns Olhos De Oiro, claro.
"Há momentos em que a necessidade mais premente de um homem é ter um objecto de amor, um foco em que centralize as suas comoções difusas. E há também ocasiões em que a irritação, o medo da vida, as desilusões, tudo isso, inquieto como espermatozóides, precisa de achar uma saída no ódio. O pobre do capitão não via ninguém a quem odiar e era as sim, há meses, o mais infeliz dos mortais."
Graças ao eterno desespero provocado pela frustração amorosa que assola a humanidade - segundo a visão de McCullers - as vidas de "dois oficiais, um soldado, duas mulheres, um filipino e um cavalo" mudarão para sempre. Pelo meio, os temas de sadomasoquismo, exibicionismo ou voyeurismo são ampla e honestamente abordados, sem julgamento: Carson não dedica este romance ao amor, mas à sexualidade. E por isso mesmo, raras vezes os personagens expressam qualquer maturação dos seus sentimentos ou desejos, toda a narrativa é focada nas sensações corporais, direcionada para a expressão do desejo sexual e o isolamento metafísico.
"No espírito fervilhavam-lhe planos diabólicos para se vingar do soldado. No íntimo bem sabia que esse ódio, apaixonado como o amor, o não largaria mais durante o resto da sua existência."
A sua capacidade de fazer um relato exato da morbidez da paixão, da obsessão e dos impulsos amorosos, sem recorrer ao exagero e à frieza, fazem desta autora uma das minhas referências.
"A própria casa irritava o capitão com a sua mobília vulgar: na sala havia o imprescindível sofá de repes, duas poltronas, tapete de um vermelho berrante e papeleira antiga, tudo rescendendo a banalidade. As cortinas de renda não primavam pela limpeza, e em cima da prateleira do fogão viam-se várias quinquilharias - um cortejo de elefantinhos de marfim, um par de candelabros (aliás, bonitos) de ferro forjado, uma estatueta pintada (que representava um preto a trincar uma talhada de melancia) e uma taça mexicana de vidro azul, na qual Leonora conservava velhos bilhetes de visita. Todos os móveis estavam um tanto desconjuntados, devido às mudanças frequentes. A acumulação de coisas, a frivolidade feminina de que tudo aquilo se revestia exasperavam ao máximo o capitão. Com secreto sentimento de inveja, pensava ele no quartel, vendo em imaginação os leitos de campanha simples e alinhados, o chão nu, as janelas severas, sem cortinas. A um canto desse dormitório fantasiado, ascético e austero, avultava (não se sabe porquê) um baú antigo, esculpido, com fechos de latão."